Dust - capítulo 4
Fuga de Albion
30 anos antes, reunião do Conselho, Albion.
Owen estava apoiado na
lareira, de braços cruzados. Simon, sentado na cadeira apoiando os cotovelos na
mesa, cobria o rosto com as mãos. Ambos estavam visivelmente alterados:
— Seja sensato, homem! Não há nada que possa
ser feito aqui. Albion está perdida. A maioria dos habitantes não seguirão você
no Conselho, eles temem mudanças mais do que temem Amadan.
— Eu tenho que tentar, Simon.
Esta é a minha cidade!
— Não, não é! E você sabe
disso. Este antro de traição está longe de ser sua cidade. É apenas o lugar em
que mora! Por enquanto...
— Há esperança, eu acredito
nisso!
Owen colocou as mãos no bolso
e caminhou até a janela, olhando pensativo e triste para a rua. Simon o
acompanhou e parou ao lado.
— Será morto se insistir em
afrontar o Conselho, isso sim! Amadan e os outros te calarão, assim como
fizeram com tantos outros que tentou ajudar, Owen. Eles não permitirão que
assuma o controle.
Albion passava por uma crise
de recursos. Faltava comida e mais água que o normal. Os dois sabiam que isso
era mentira, que Amadan havia restringido a distribuição de recursos para
pressionar Owen e manter o controle sobre a cidade, mas o que Owen não sabia
era que estava sendo vigiado.
Do outro lado da rua,
moradores cuidavam de suas vidas e entre as idas e vindas destes habitantes,
volta e meia passavam homens sisudos olhando de relance para a casa de Olwen. Simon
observava atentamente. Colocou a mão no ombro de Owen e lamentou a ingenuidade
do amigo, mas alegrou-se por saber que era uma pessoa nobre e pura.
— Há dois anos cheguei aqui
procurando uma pessoa trazendo notícias de seus pais e pedindo informações e
auxílio, oferecendo minha ajuda em contrapartida. Durante estes mesmos dois
anos fiz o que pude para cumprir minha promessa.
— Simon, eu...
— Owen, não estou cobrando sua parte do acordo.
– Simon se referia à ajuda para encontrar o minério que precisava.
— Sabe o quanto isso é importante.
— Sim, eu sei. Por isso
continuo te apoiando, mesmo não concordando. Há outro meio, “Xerife”, sabe
disso.
— É arriscado demais, não
posso pedir a todos que me apoiam que façam isso.
— Eles te seguirão, aonde
quer que vá! E farão isso porque não há escolha, meu amigo. Você não vê, ou não
quer ver, mas o momento de nossa partida chegou.
— Tenho que tentar mais uma
vez. Falarei no conselho pedindo mudanças na conduta política da cidade.
— É, eu sei...
— Não, agora é minha vez de
interrompê-lo, meu amigo. Será minha última tentativa. Se Amadan não ceder,
continuaremos com seu plano e faremos a Caravana para o Oeste. Iniciaremos os
preparativos amanhã e partiremos em uma semana.
Simon assentiu com a cabeça,
mas seus pensamentos estavam na partida da Caravana naquela noite. Amanhã seria
tarde demais, e todos sabiam. Owen era teimoso demais para aceitar a verdade,
embora soubesse, bem lá no fundo, que era uma causa perdida. Tentaria mesmo
assim apenas por acreditar em seus ideais, mas não fazia ideia do perigo que
correria nas próximas horas.
A conversa parou por ali.
Cada um permaneceu em seu canto, com seus próprios pensamentos. A sala já
estava na penumbra quando o silêncio foi quebrado:
— Está na hora, Xerife!
Owen virou a cabeça e
observou o amigo olhando para o relógio de bolso. Devia ser um objeto
importante para ele, porque nunca deixava à mostra, principalmente em público.
Simon percebeu o olhar do amigo e virou-se para ele:
— É especial e importante
para mim, mas acho que já sabe disso. De qualquer modo, não funciona! Quebrou
no dia em que cheguei a Albion, no dia em que nos conhecemos.
— Tem conserto?
— Talvez. É por isso que preciso
da sua ajuda. O relógio precisa de um mineral raro para ser consertado ou não
voltará a funcionar.
Owen lembrou do dia em que
conheceu Simon, da conversa que tiveram e da promessa que fez a ele. Dois anos
se passaram sem que o amigo cobrasse sua parte do acordo. Em contrapartida,
Simon ensinou e guiou Owen em toda sua carreira política até o momento. Se não
fosse por ele, Owen não teria a influência atual com o grupo que compartilhava
de seus ideais.
— Bem, vamos resolver essa
pendenga de uma vez! Simon, meu amigo, será meu último dia no Conselho. Se não
for ouvido, em uma semana partiremos daqui e cumprirei minha parte no acordo.
Sei que tem sido muito paciente comigo, e eu muito teimoso.
Simon meneou com a cabeça,
mas não parecia ansioso, embora sua expressão também não fosse serena. Havia
uma incógnita naquele olhar. Owen já havia saído quando Simon trancou a porta e
se dirigiu calmamente ao Conselho. Quando chegou, preferiu acomodar-se no
fundo, discretamente. Reparou que o salão estava bem mais movimentado que o
habitual.
O debate começou amistoso,
todas as formalidades foram seguidas sem problemas e Owen expos suas
reivindicações de forma impecável. Amadan e seus asseclas, que ouviam em
silêncio, não interromperam, mas quando tomaram a palavra, desconstruíram cada
frase de Owen de forma que todos os seus argumentos pareceram tolos aos
populares.
Era mentira. Owen sabia que
tudo aquilo não passava de um engodo, que a população de Albion estava sendo
tola ao acreditar nas mentiras dos políticos, mas eles não mudariam. Olhou para
seu amigo Simon e concordou com a cabeça. Partiriam de Albion em uma semana, ou
assim esperava.
Curiosamente, a reunião havia
se estendido muito além do habitual e acabou no início da madrugada. Enquanto
todos saíam do Conselho, Simon evadiu-se evitando a multidão e parou em um beco
escuro ao lado do prédio. Ali, três figuras aguardavam em silêncio.
— Estão preparados?
— Certamente, senhor!
— Owen sairá em breve.
Sigam-no e não o percam de vista.
— Devemos atirar para matar?
— Não! Evitem um tiroteio.
Sabem como Amadan reagiria. Façam em silêncio.
— Mas eu sou um atirador!
Pensei que....
— Pensou errado, Tarantino.
Preciso que vigie cada passo de Owen, e apenas isso. Vocês estão aqui para
vigiar. Se algo der errado, e apenas se der muito errado, serão o controle de
danos, mas em hipótese alguma deixem que ele perceba que está sendo seguido.
Aqueles três eram confiáveis,
apesar de formarem um trio improvável. Tarantino era o atirador do grupo, porém
impulsivo e briguento. Para controlá-lo havia Ramon, intuitivo e com bom senso
suficiente para não fazer e não deixar os outros dois fazerem besteira. Para
completar, Dante era especialista seguir silenciosamente, o que era necessário
no momento, sem dizer que possuía uma memória impecável e conhecia cada canto
da cidade. A missão dos três era seguir Owen aonde quer que ele fosse naquela
noite e protegê-lo a distância. Definitivamente não era o grupo mais
equilibrado, mas suas habilidades eram necessárias no momento. Despediram-se do
contratante, separaram-se e misturaram-se na multidão.
Owen saiu pouco tempo depois.
Parou na frente do Conselho e olhou para os transeuntes procurando alguém. Não
encontrou, porque suspirou e começou a andar passando em frente ao beco, agora
vazio. Após o fracasso ocorrido a pouco, o homem estava calado e melancólico.
Um habitante ou outro sorria e cumprimentava, mas não recebia resposta. Alheio
aos amigos, também não percebia a aproximação silenciosa de homens diferentes.
O mais sorrateiro vinha por trás, camuflando-se na multidão. Um segundo, mais à
frente, começou a andar após acender um cigarro e mantinha uma posição próxima,
ligeiramente mais à frente.
Alheio a tudo, Owen virou em
uma rua secundária e deserta. Um terceiro homem aguardava no final dela. Os
dois anteriores vieram pelas suas costas. Não havia outro caminho.
Próximos, mas não o
suficiente, os três contratados de Simon discutiam:
— Dante, seu imbecil. Perdeu
Owen de vista!
— Não foi culpa minha, vocês
viram. Fui atacado!
— Porque tentou ROUBAR uma
senhora!
— Não, ele veio por aqui,
tenho certeza. Vamos virar ali naquela rua.
— Está supondo.
— Não, estou escolhendo. Na
rua principal ele não está, então só pode ter virado ali.
— Mas há outros caminhos, não
dá pra saber, melhor nos dividirmos.
Quando Ramon virou para
Tarantino, este já não estava mais entre eles. Olharam em volta e viram que o
pistoleiro dobrava a esquina indicada por Dante. Correram atrás a tempo de
verem a cena que se desenrolava. Owen continuava andando alheio ao que
acontecia e estava muito próximo do final da rua. Com o barulho que fizeram,
chamaram a atenção dos dois que seguiam pelas costas, que se viraram sacando as
armas. Não foram rápidos o suficiente. Tarantino disparou primeiro.
Com o barulho, Owen se virou
dando as costas para o terceiro pistoleiro, que sacou a arma sem que os três
companheiros pudessem fazer algo a respeito. Estavam longe demais e o alvo
estava atrás da vítima. Um disparo foi ouvido. Era o fim. Ramon, Dante e
Tarantino olharam para o fim da rua esperando ver Owen caindo, mas ele estava
em pé, atônito. O terceiro homem caia sem ter atingido Owen, que com um olhar
denunciava de onde viera o disparo.
De um telhado alto, uma
mulher mantinha o rifle apontado para a área de conflito. O tiroteio chamou a
atenção dos moradores, que saíram às ruas procurando saber o que aconteceu. Os
três colegas, mais próximos da rua principal, se mesclaram ao público enquanto
Owen se afastou observando bem o homem morto próximo a ele. Era um dos homens
de Amadan. Disso ele tinha certeza.
Owen conseguiu se afastar da
confusão e acessar a rua principal sem chamar atenção, mas não chegou longe. Amadan
tinha um “plano B”, garantindo que o homem fosse calado e parasse de se
intrometer nos assuntos políticos de Albion. Percebendo a emboscada, Ramon,
Tarantino e Dante misturaram-se aos curiosos e acompanharam de longe o que
acontecia.
— Owen, você está preso por
assassinato!
— O que? Está louco, homem,
nem armado eu ando.
— Jura? Então me explique o
que é isso?
O acusador tirou uma arma
gasta e que talvez nem funcionasse de um bolso e, realizando um truque de
prestidigitação bem tosco simulou estar pegando a arma da cinta de Owen.
— Vejam, cidadãos de Albion.
O “protetor das leis e bons costumes” é um criminoso! Assassinou vigias da
cidade a sangue frio.
As pessoas reprovavam e
acusavam Owen, inclusive vizinhos que sabiam que o homem não possuía armas e
era pacífico. Mas não importava. Se a Lei dizia que ele era culpado, então ele
era.
Owen parou de falar e deixou
ser levado para a prisão. Provavelmente já haviam preparado toda a encenação e
seria executado. Seu amigo estava certo o tempo todo, não havia futuro para a cidade.
Enquanto isso, Simon
aguardava o retorno do amigo quando bateram à porta. Não poderia ser um bom
sinal, ainda mais com o atraso. Abriu o postigo – era Selena, a atiradora do
telhado.
— O que deu errado? – Simon
perguntou aflito.
— Tinha razão, era uma
armadilha. Estavam preparados, levaram seu amigo para a prisão.
— Por que não impediu?
— Eu impedi. a primeira
cilada. Não estava preparada para a segunda.
— Como assim?
— Estavam esperando que o
assassinato falhasse. Aqueles três chamaram muita atenção, eu acho. Do telhado
consegui ver um quarto homem que chamou reforços antes que eu pudesse fazer
qualquer coisa. Desculpe, senhor, mas eles sabiam demais. Acho que sabem do senhor
e do plano de vocês.
Simon pegou uma sacola
pequena e pesada que tilintava ao ser passada para a mão da garota. Junto com a
sacola, entregou um cantil de água.
— Selena, poderia fazer um
favor antes de partir?
— Pelo valor que pagou posso
fazer até dois, senhor.
— Avise aos outros. Diga que
partiremos hoje, como combinado, na saída oeste.
— Sim, senhor! E vai querer o
segundo favor? Estou generosa hoje.
— Pode ajudar os três? Se não
conseguirem resgatar Owen a tempo teremos partido. Ele saberá o que fazer.
— Pode deixar, senhor.
Provavelmente estão vigiando a prisão, planejando o resgate.
E de fato estavam, mas o
problema dos três, apesar de suas habilidades, é que estavam tratando a
situação como algo banal e, obviamente, fariam besteira. E fizeram!
Dante, impulsivo, acreditava
que podia entrar e soltar Owen sem problemas. Por garantia, Tarantino resolveu
ir junto. Ramon ficou para trás e pensou que o melhor mesmo seria explodir
tudo. Pegou suas dinamites e foi para os fundos prepará-las, e essa atitude
salvou os dois companheiros, embora a confusão tenha sido dos infernos.
Enquanto preparava as bananas
de dinamite, Ramon ouvia a confusão armada em pouco tempo por seus
companheiros. Lá dentro, Dante tropeçou em seu plano improvisado, irritando os
dois guardas da recepção, transformando o resgate em um tiroteio. Para não
serem presos, Tarantino sacou as armas e matou os dois guardas, chamando a
atenção dos outros, na carceragem e nas ruas.
— MAS QUE DIABOS! O QUE ESTÃO FAZENDO? –
gritava Owen da cela.
Tiros eram disparados
arrancando o reboco das paredes.
— Viemos resgatá-lo, Senhor. Não se preocupe!
Eram tantos tiros que não
havia como não gritar.
— RESGATAR? VOCÊS VÃO NOS
MATAR!
Um tiro passou zunindo na
cabeça de Owen, furando seu chapéu.
— MEU CHAPÉU, MEU CHAPÉU!
ACABEM LOGO COM ISSO, SE MEU CHAPÉU FOR ATINGIDO DE NOVO EU MESMO MATAREI
VOCÊS!
Não houve tempo para mais
disparos ou discussões. Uma explosão arremessou entulho para todos os lados
derrubando os guardas e aturdindo Tarantino e Dante. No fim, Owen precisou
resgatar os dois e guiá-los para fora através da abertura na parede, onde Ramon,
caído na rua e cheio de poeira e detritos, observava orgulhoso e aturdido sua
obra.
— Não fique sentado, seu pateta, eles não
ficarão lá dentro a noite toda! – reclamou Owen.
Apesar de excessiva, a
explosão garantiu uma pequena vantagem ao quarteto, que era observado por
Selena de um ponto alto. Quando os guardas conseguiram se reagrupar e iniciar a
perseguição, Owen e seus associados saíam do estábulo preparado de antemão por
Simon. Partiram imediatamente sem olhar para trás. Fora dos muros da cidade, a
noite trazia muitas dúvidas de um futuro improvável. O quarteto, que agora
recebia a companhia de Selena, galopava em direção ao Oeste desesperadamente
enquanto soldados de Amadan os perseguiam furiosos.
Os fugitivos precisavam
rastrear no escuro o caminho tomado pela Caravana guiada por Simon, ao mesmo
tempo que evitavam serem perseguidos por soldados bem treinados. Não podiam iluminar
o caminho com tochas ou lampiões, nem podiam perder muito tempo procurando os
rastros corretos. A situação piorou quando um vento mais forte, carregado de
poeira, alertou Owen indicando uma tempestade de areia. Teriam que atravessar
esta parte do deserto antes que a tempestade cobrisse os rastros da Caravana e
antes que fossem alcançados por seus perseguidores. Teriam poucas horas antes
que o tempo piorasse.
O dia começava a raiar e
denunciava a posição de todos. Antes que pudessem tomar uma decisão crucial, a
tempestade chegou obscurecendo o início do dia. Por um lado, a areia encobriria
seus rastros e daria cobertura contra os perseguidores, mas em contrapartida
estariam expostos à tempestade.
Vendo a poeira encobrir os
fugitivos e temendo por suas vidas, os homens de Amadan regressaram às pressas para
a segurança de Albion jurando confirmar a morte de Owen no deserto e seu corpo
desaparecendo nas areias após a tempestade.
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