RPG e o primeiro contato

O nascimento de um mestre



Conheci o RPG por acaso em uma viagem escolar. Era 1994 e terminávamos a 8ª série (hoje 9º ano). Naquela época eu era mais introspectivo e não me socializava muito. Foi por acaso que ouvi dois ou três colegas contando aos outros, na pousada, sobre um jogo que conheceram naquele dia, em que representavam papéis de magos, guerreiros e outros heróis. Aquilo prendeu minha atenção e fiquei ouvindo a história que se seguia e que represento abaixo tal como me lembro:

“Era um jogo diferente, jogávamos como heróis, cada um representava algo diferente. Tinha o mago, o guerreiro e outros que não lembro agora, mas o jogo era muito legal. Nós fomos para uma taverna e um velho encapuzado foi até a gente e perguntou se queríamos viver uma aventura, ganhar tesouros [...] então acampamos na floresta, na beira de uma montanha. Alguém tinha que vigiar e o Gabriel foi mal nos dados e dormiu. Aí abriu uma passagem na montanha e saíram uns lobos que andavam em duas pernas e nos atacou. Quando acordamos um dos lobos que era o líder fez um gesto de silêncio [...]”

A narrativa mexeu comigo. Fiquei tão impressionado que fui me aproximando mais e perguntando sobre o jogo, sobre onde haviam encontrado a loja, se poderiam me levar lá para jogar também. Disseram que me levariam, mas que o jogo deveria ser marcado com um dia de antecedência, precisava formar grupo e que provavelmente eu não conseguiria jogar.

Fomos ao Shopping e me levaram à loja. Um cartaz informava a programação e era definitivo, eu não jogaria antes de voltarmos de nossa viagem. Apesar de chateado, não me dei por vencido e entrei me deparando com uma caixa da Grow preta. Na capa, um bárbaro se preparava para golpear um gigantesco dragão vermelho. Era aquele o jogo! Confirmei com o lojista e comprei aquela caixa, ganhando as duas primeiras edições de uma revista especializada em RPG. Não fiz mais nada, apenas jantei com o pessoal e voltei o quanto antes para a pousada louco de vontade de jogar.
Lembro que peguei a chave, corri para o quarto e me tranquei para poder ler sossegado. E então veio minha segunda surpresa. Acostumado com jogos de tabuleiro em que as regras se resumiam a um folheto frente e verso, quando muito quatro partes, deparei-me com um livro de pelos menos 60 páginas mais um fichário, bem mais espesso, que me assustou muito mais. Hoje estou habituado a ler regras mais extensas que isso, mas naquela época, quando não gostava muito de ler, aquelas páginas representavam um desafio enorme, mesmo porque não eram as únicas folhas existentes.
Iniciei minha exploração tímida manuseando todo o conteúdo sem entender quase nada. Foi só então que peguei o folheto que estava em cima de tudo quando abri a caixa (devia ter feito isso primeiro, acho que era por isso que o folheto vinha em primeiro plano). Nele, descobri que o bloco de fichas servia para um início rápido, contendo a frente com um conjunto de regras e o verso com uma aventura solo. O livro de regras servia para referências quando eu já estivesse habituado com o jogo.
Passei a noite tentando ler e entender as regras enquanto jogava, mas a dificuldade de assimilar tantas informações novas enquanto exercitava a leitura, o que fazia muito pouco na época, dificultavam a tarefa, fazendo com que pensasse a todo momento na oportunidade perdida de ter jogado anteriormente com alguém que conhecesse o jogo.
E de todos esses aborrecimentos, o que mais estragou minha noite foi saber que eu teria que ser o Mestre de Jogo. Eu não queria inventar histórias, eu não queria ter que me preocupar com tudo aquilo. Eu só queria jogar. Era pedir muito?
No dia seguinte arrumamos as coisas e voltamos para casa. Nossa viagem havia chegado ao fim. Naquele restinho de ano formei meu primeiro grupo de jogo, que permaneceu com poucas modificações por mais ou menos um ano ou dois. Inexperiente, precisei aprender da forma mais difícil como jogar e como ser mestre – sozinho. Morar em uma cidade pequena, no interior do Estado, em que poucos conheciam e menos ainda jogavam, me obrigou a isso.
Como dono do jogo e, assim como meus amigos, principiante, não entendia muito bem as regras e como fazer tudo aquilo se encaixar. Jogávamos como dava, na tentativa e erro e, desta forma, fomos aprendendo. Éramos o “quarteto do RPG”! Não tive um mestre, não joguei partidas anteriores, eu não tinha base de absolutamente nada para comparar com aquilo que estava fazendo.
Naquele primeiro ano essa ausência de referências me incomodava enormemente. Eu duvidava de mim mesmo, de minhas capacidades e se estava jogando certo. O que ajudou muito, neste início, foi acompanhar a única revista especializada de RPG no mercado brasileiro, mas ainda assim algo não estava certo. Lembro que ficava admirado com o material disponível nas revistas e como aquilo parecia ser fácil para eles.
Vez ou outra, pegava minha coleção e folheava as primeiras edições, que em minha opinião eram as melhores, e admirava o conteúdo, principalmente as aventuras (falo mais sobre isso aqui). Minhas únicas certezas eram que eu gostava muito do jogo, apesar de não aceitar o fato de ser mestre, e que queria comprar e jogar GURPS, que conheci através das revistas.
Adquiri o Módulo Básico junto com o suplemento Cyberpunk no final daquele ano, e depois de lê-lo, por mais que conhecesse outros jogos, meu preferido nunca mudou. O que mais gostava nele era sua robustez. GURPS era pra mim um sistema de regras completo e extremamente dinâmico, pois bastava ler o módulo básico e poderia montar qualquer aventura em qualquer cenário com qualquer tipo de personagem – e as aventuras que eu mais gostava eram as espaciais e cyberpunks.
Foi com GURPS que evoluí como jogador e passei a escrever aventuras e campanhas mais sérias e complexas e, o mais importante, a gostar de ser o mestre de jogo. Se antes eu me incomodava pelo fato de não ter aprendido jogar com um jogador experiente, agora eu me orgulhava, e ainda me orgulho, de ter aprendido sozinho e ter construído meu próprio estilo, estilo este que tive o privilégio de disseminar para outros jogadores que passaram por minhas mesas. Alguns destes jogadores foram além e se tornaram mestres, outros apenas evoluíram seus conhecimentos e se tornaram veteranos.
Do grupo original não restaram jogadores, apenas eu, mestre veterano. Apesar disso a amizade ficou e ainda mantenho contato esporádico com alguns. Não sei dizer quantas pessoas jogaram comigo, mas foram mais de cento e cinquenta, isso posso garantir, e a todas estas pessoas que passaram por minhas mesas, deixo o meu muito obrigado!

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